Dom Pedro era herói mesmo? É uma falácia falar em Independência a partir de um único e oficial Grito do Ipiranga. Foram muitos os heróis e heroínas que lutaram por um projeto de nação mais livre e mais igualitário. Ao tentar responder essa questão surgem outros personagens, outros saberes, outros levantes, outros gestos. A ideia hegemônica de um gesto único de Independência ou Morte vai sendo derrubada a partir da crítica à cultura europeia que se instaurou no Brasil através de métodos tradicionais da época – invasor, violento, genocida e escravocrata – dentro de uma visão de opressores versus oprimido.
O painel de país vai sendo construído pelas histórias de Maria Felipa, Chaguinhas, Leopoldina, os irmãos Bonifácio, Gonçalves Ledo e Antonio Carlos, Maria Quitéria, Frei Caneca, entre tantos outros heróis.
Fizemos uma escavação em busca do passado, reencontrando fantasmas nas salas do império, colonialismo, violência social, autoritarismo e escravidão. Fantasmas que, infelizmente, ainda se manifestam no presente como prática arraigada. Sem esta reflexão sobre a constante atualização do colonialismo histórico e suas estruturas de poder, me parece uma falácia pensarmos a ideia de um futuro, um país mais belo e justo para todos.
O erro é acreditar que há um protagonista neste episódio da história do Brasil. O processo da Independência está longe de ser pacífico. Por todas as regiões do país, centenas, milhares de brasileiros lutaram e morreram nos anos anteriores e seguintes à Independência, como os rebeldes da Revolução Pernambucana, os heróis comuns assassinados na Batalha do Jenipapo e os revolucionários da Independência da Bahia.
O arco temporal da série vai de 1808, quando a família real portuguesa chega ao Brasil, até a morte de Dom Pedro I, em 1834. Estamos propondo uma reflexão sobre a aurora do século XIX. Estamos diante da colonialidade, sistema fundado pela modernidade. Logo, apresentamos a modernidade como uma sucessão de eventos trágicos. O despontar de uma era trágica.
A família real, em sua chegada, vai se associar a traficantes de escravizados e travar relações escusas que resultaram no Brasil de hoje. A construção política baseada no jogo de interesses que ainda hoje determina os caminhos do país já estava presentes nas relações entre a família real e a elite da época, a começar pelo palácio da Quinta da Boa Vista, que foi doado a Dom João VI por um dos maiores traficantes de escravizados do início do século XIX, Elias Antonio Lopes, o Turco.
Nosso presente está repleto de passado. Me parece fundamental essa ponte entre nossas fundações e os desdobramentos que ocorreram nos anos seguintes. O século XIX foi um período estrutural, marcando avanços e retrocessos com os quais lidamos até hoje. A história do Brasil sempre nos foi contada de forma romantizada, quando, na verdade, é trágica, bárbara, marcada por golpes e genocídios que precisam ser iluminados.
Sempre acreditei na função das TVs abertas, especialmente a TV Cultura, que são concessões públicas, veículos fundamentais e de imensa responsabilidade, capazes de abraçar uma missão maior, que é a de não se restringirem simplesmente a seduzir telespectadores, mas, sim, caminhando de mãos dadas com educação, contribuírem na formação dos cidadãos. Minha busca é por oferecer ao homem comum, simples e fraterno, uma televisão que privilegie a inteligência e a sensibilidade de todo um país, sem com isso abrir mão do espetáculo. Enxergo a dimensão que a televisão alcança, e tratá-la apenas como diversão me parece bastante contestável. Precisamos de diversão, mas também precisamos nos orientar e entender o mundo.
Parti da construção de um espaço não realista, vazio, minimalista talvez, com o mínimo de elementos possíveis, onde todos os personagens ocupam este mesmo espaço físico. Há uma negação do cenário descritivo, da hierarquia de classes e da reconstituição histórica, que, em si, já traz no seu bojo uma quantidade enorme de clichês. Gravamos em um espaço circular, que chamamos de “Cosmograma”, construído exatamente sobre o tablado onde os atores ensaiaram durante quatro meses. A partir deste conceito, essa dramaturgia se apoiou no valor da palavra e dos corpos, e os intérpretes tornaram-se mensageiros, num retorno à dramaturgia do ator. Neste sentido, é uma estética da urgência, em que o importante é a mensagem e a imaginação e é a partir destas que se dá a reflexão.
Sinceramente eu não acredito que tenhamos alguma coisa para celebrar nestes 200 anos da Independência. Essa ideia de independência e até mesmo de nação me parece uma ideia incompleta. No meu modo de ver, se trata de um trabalho atual, não de época. Nosso presente está repleto de passado. Me parece fundamental fazermos essa ponte entre nossas fundações e os desdobramentos que ocorreram nos séculos seguintes. O século XIX foi um período estrutural, iniciando avanços e tragédias com as quais lidamos até hoje. A história do Brasil sempre nos foi contada de forma romantizada, quando, na verdade, é trágica, bárbara, marcada por golpes e genocídios que precisam ser iluminados.
Por outro lado, nunca aprendi tanto quanto nesse trabalho sobre o país. Esta série me fez entender melhor minha trajetória, todos os meus trabalhos anteriores, minha busca por um diálogo fraterno com as potências das diversas culturas que habitam o Brasil. Grandes mestres atuaram como consultores neste trabalho, como a historiadora Ynaê Lopes do Santos (autora do livro Racismo no Brasil: uma história da formação do país), os escritores Kaká Werá Djecupé e Cidinha da Silva, o filósofo e músico Tiganá Santana e o professor de kimbundu Niyi Monanzambi.
Há um espelhamento trágico do século XIX com o Brasil de hoje. O que a série apresenta não é uma reconstituição ou um conto de fadas sobre o período, ela vai na contramão radical dessa atrofia, mostrando, através de fragmentos o que nós podemos ser enquanto potência e força se nós reunirmos todos estes saberes e culturas que foram postos à margem em função de um modelo único civilizatório europeu e colonialista. Estamos em um território absolutamente rico de possibilidades, que poderia constituir uma grande confluência de culturas para produzir uma cultura brasileira legítima e ainda mais potente.
No lugar deste entrelaçamento de culturas e potências, foi construído no Brasil um imenso apagamento de possibilidades, privilegiando a cultura hegemônica da civilização branca europeia. É um país que se desperdiça. A série propõe uma reflexão sobre a falência deste projeto hegemônico, e, ao mesmo tempo, afirma a possibilidade real, vívida, de acessarmos as diversas possibilidades que o país nos apresenta diariamente. Nós não estamos diante de uma ruína, como dizem muitos, no meu modo de ver, nossa tragédia é não conseguirmos enxergar essas diversas possibilidades, não conseguirmos reconhecer a importância dos povos originários e da cultura africana, não conseguirmos – desde o século XIX – aceitá-los inseridos em uma concepção de país, da qual eles sempre foram e serão os verdadeiros protagonistas.
A pergunta que fazia a mim mesmo todos os dias enquanto escrevia, filmava e editava e que me orientou foi: que País é esse? Os acontecimentos dos últimos anos, ocorridos no Brasil e no mundo exigem dos artistas uma reflexão radical, abrindo os olhos e o coração em relação à forma com que nos foi contada a história do país. Como resposta a esta reflexão, surgiu a necessidade de um olhar não oficial. Uma mensagem ligada à nova historiografia pede, necessariamente, uma nova forma que dialogue com as várias possibilidades de se compreender o mundo.