Quando eu decidi fazer a viagem ao Oriente Médio, como parte das pesquisas para o filme Lavoura Arcaica, já havia pincelado no romance as linhas gerais de sua estrutura, ou seja: as coordenadas principais do texto sobre as quais Raduan Nassar trabalhou. Então nos agarramos a elas e fizemos a viagem ao Oriente Médio e depois à Andaluzia, buscando encontrar lá, espelhadas na cultura Mediterrânea, as ancestralidades das coordenadas do texto.
O que seria amor sob o ponto de vista de uma jovem pastora de cabras no norte do Líbano? Esta é praticamente uma questão mítica para elas, uma questão que nos pareceu entregue a uma força maior, uma questão que pertenceria a um destino já escrito, lhes restando apenas aceitá-lo. Nós lhe perguntamos: frente a algo tão devastador, como seria, ou o que seria a relação com o amor, a liberdade, os afetos, as fronteiras? Que luta se travava dentro delas, como lidam com o que para elas é o inevitável, o trágico? E como esta luta, que se traduz em sobrevivência, se processa no imaginário delas?
Essa aproximação com a terra, no meu modo de sentir, se se dá num plano simbólico – ou mítico, se você preferir. Ela será sempre um elemento de ordem espiritual, onde vou me conectar, seja qual for o território, em qualquer geografia. Então, minha referência naqueles dias era mesmo calçada no universo sertanejo do Brasil. Me flagrava traduzindo aquelas relações e tipos humanos para minha memória de um nordeste. Estávamos no mediterrâneo, reencontrando essa ligação, que desde sempre eu havia feito de uma forma intuitiva.
Por outro lado, eu tinha consciência absoluta de que estava ali escavando um filme brasileiro, ou, em outras palavras, eu fui ao Oriente Médio, ao Líbano e à Síria para ver, no sentido de conhecer, ter contato com aquelas visibilidades, para depois fazer com que elas desaparecessem aqui, na realização do filme; para que elas sofressem o processo natural da miscigenação, uma espécie de desaparecimento. Como diz Alceu Amoroso Lima, decifrando o romance de Raduan: “Numa alma bem brasileira, mas dominada por um sopro da tradição clássica mediterrânea”. Assim, para a cenografia, eu gostaria de passar um espaço, assim como o figurino, para a atuação dos atores, para tudo em si, um sopro de mediterrâneo, como se no filme houvesse uma alma mediterrânea contracenando com a alma brasileira, uma atmosfera, algo que não chegasse ao nível descritivo, nada que você pudesse apontar. Não haveria apenas um diálogo espiritual e invisível entre essas duas visibilidades.