Visão do diretor
Por Luiz Fernando Carvalho (entrevista a Patrícia Andrade, Jun - 1993)Divido meu trabalho em duas partes em Renascer. A primeira corresponde ao conceito e à realização da fase inicial da novela: a tentativa de, a partir do texto, buscar uma narrativa próxima da fábula, do universo lúdico do povo brasileiro. A outra, realmente mais difícil, marcou a passagem de época, quando os personagens já não seriam tão motivados pela esperança, pelo romantismo. A precariedade encontrada nas estradas de terra e nas carroças daquele tempo teve que ser encontrada nas relações humanas, e o sonho, sobreviver como um alento, nas aparições de Maria Santa, aliviando o fardo de Inocêncio.
A novela alcançou um tom, buscado por mim e pelo Benedito Ruy Barbosa, de fábula, de encantamento, de recuperação do herói, do sonho, da esperança, aliados a uma intensa consciência do real e do país. Não poderia ser uma fantasia pura e simples, pois o país não permite. Renascer é o retrato do povo brasileiro, que vive com o delírio do sonho e a precariedade do real.
TRANSIÇÃO DE FASES
Na transição para a segunda fase, a perda de seis capítulos com a reedição da primeira fase, provocou uma antecipação da continuação da história e um desequIlíbrio estético entre alguns cenários. Isso exigiu, inclusive, algumas regravações. Paralelamente, houve também uma certa saudade do público e uma certa resistência a alguns personagens da segunda fase. Tivemos que nos esforçar muito, como se estivéssemos começando um novo primeiro capítulo. Com a ajuda de todos, fomos identificando as falhas, criando uma nova unidade, que culminou com a ideia do Benedito Ruy Barbosa de levar a maioria do elenco para Ilhéus. Enfim, muito mais difícil do que conceituar uma novela é fazer com que este conceito não se esfacele durante a longa caminhada de quase 200 capítulos.
LANÇAMENTOS
Um dos grandes acertos da novela é o resultado dos lançamentos. O mais importante, sem dúvida, é o Jackson Antunes, que entrou na novela com uma responsabilidade enorme. Em outras escalações, o Damião, personagem dele, na certa estaria sendo defendido por um ator que oferecesse menos riscos à empresa. Em Renascer, lancei atores como Leonardo Vieira, Cyria Coentro, Rita Santana, Cacá Carvalho, Isabel Filardis, Maria Luisa Mendonça, Marco Ricca e Paloma Duarte. E todos, mesmo os que não tinham experiência, mostraram que buscam a qualidade da representação. Não me sinto à vontade em pôr alguém dentro de um canal de televisão, visto por milhões de telespectadores, sem que esta pessoa tenha algo a dizer. Não compactuo com a escalação de beira de praia. procuro pessoas que queiram dar esse passo conectadas com uma liberdade interior, e não conduzidas por uma mídia ansiosa por mais e mais mitos por minuto. Infelizmente, a condição social do país propicia esse delírio em busca da fama.
O ESPELHO
No início da minha carreira, eu fazia televisão com a pretensão de estar fazendo cinema. Era apaixonado pela câmera. E isso foi se esvaziando. Houve um momento em que eu tive uma lição maravilhosa da Yara Amaral, quando eu dirigia Helena na TV Manchete. Fizemos uma cena em que ela e a Mônica Torres ficavam em um porão. No cenário, tinha um espelho antigo. Resolvi tirar partido dele, porque era uma outra face da personagem que iria se revelar e pensei em uma associação com o reflexo. Terminamos de gravar, e eu achei maravilhoso o resultado. Chamei a Yara para revisarmos juntos. Ela ficou em silêncio e eu perguntei o que ela havia achado. De repente, a Yara disse, com um tom de voz baixinho: “Senti vontade de ver mais meus olhos”. Aquilo me veio de uma forma especial. Todo malabarismo com a câmera não adiantou muito. Dane-se o espelho!
Eu comecei a perceber mais a alma do ator, os olhos de cada um. E tentar fazer com que eles emanem imagens para mim. Antigamente, eu armava e marcava a câmera e, depois, chamava o ator. Hoje, chamo primeiro o personagem.
DIREÇÃO AUTORAL
Sou um apaixonado pela primeira fase de Renascer. Ali consegui mergulhar na fábula sem ser piegas. Mas, em geral, sou muito crítico com o meu trabalho. Se for rever os capítulos, vou descobrir coisas que faria diferente, como a sequência da morte da Maria Santa. É maravilhosa, como o texto também, mas alguma coisa me incomoda lá. Talvez eu tenha exagerado um pouco na dramatização. Podia ser mais contida.
Sem dúvida, busco uma direção autoral. Por mais que eu crie associações, a síntese é do autor. Na TV, hoje, se você não tem uma caligrafia pessoal, alguém segura a sua mão e assina por você, há um padrão para quem não tem padrão. Mas eu tive a sorte de ter grandes professores dentro da televisão. E todos impunham as suas personalidades. Não tenho porque fugir à busca de um trabalho mais autoral na TV. Diretor só é diretor quando tem responsabilidade artística. Senão, vira soprador de apito.